domingo, 21 de dezembro de 2014

Episódio Único: Aceitação

Amanhece. Seu reflexo aparece molhado no espelho do banheiro. Chegou o grande dia. A data de sua liberdade. Cortou seus cabelos. Raspou a barba. Estava preparado. Ao pegar seus pertences, entregou o uniforme carcerário e o portão se fechou a suas costas, eclodindo o último suspiro de bondade em seu coração. Agora ele era um monstro. Se um dia o acusaram injustamente de assassino, pode ter certeza que ele havia se tornado um, da pior espécie possível. O ódio fervia em suas veias e ele estava ansioso para começar seu plano de vingança.
Depois de ir até o banco, comprou uma passagem para São Paulo, sua cidade de origem e partiu para o local. No caminho, dentro do ônibus, observava uma família se divertindo e começou a invejar. A dele havia sido destruída e a futura também. Tudo por causa daquela maldita bicha louca. Ele nunca iria perdoar seu irmão por ter feito os gostos dela e ter assassinado os próprios pais e armar sua prisão. Mas ele estava voltando e iria fazer justiça.
Já era de noite, quando chegou ao seu destino. Pegou um taxi. Resolveu conversar alguém que sempre que pudera o visitara nas prisões e acredita em sua versão. Sua Tia Marisa. Já passava da meia-noite quando apertou a campainha. Ela o saudou com grandes abraços. Serviu-lhe a janta e começou a lembrar de a partir de fatos, o passado perfeito da família. Pela primeira vez em anos, Gregório derramou lágrimas sobre sua pele escura. Ver sua mãe vestida de noiva com seu pai era o melhor presente que poderia receber de natal, que alias faltava um dia para acontecer.
Tirou suas vestes e se despiu naquele chuveiro. A água caia bruscamente em seu corpo, limpando-o de qualquer vestígio que se lembrasse da prisão, mas sua mente ainda era de um criminoso. Por mais puro fisicamente que se tornasse, por mais que a vontade de voltar no tempo era enorme. De se misturar aquela água, virar objeto da natureza. Inocente, meiga. Ele não conseguia. Estava enfermo de vingança.
Vestiu sua camiseta xadrez. E fitou um bilhete de papel deixado sobre sua escrivaninha. O Endereço do casal bandido. Ficou tão fascinado que quando percebeu estava dentro do metrô. Mas uma surpresa ainda estava por vir. Eles estavam lá, sentados, abraçados, gargalhando um para o outro. Seu irmão Lucas! Como ele estava barbudo! Havia crescido desde o último encontro! Mas aquela bicha Jacobina não havia mudado nada, estava como sempre, com aquela franja loira jogada para o lado. Aquele perfume insuportável de rosas inglesas e aquele batom mortífero. Mas ele iria acabar com aquela palhaçada já. Sacou a arma do bolso e mirando no vidro da frente, disparou. Ouviram vários gritos e voltou com satisfação. Gotículas de suar caiam de sua testa. Respirava agora ofegante. Mirou o casal que parecia perplexo e beijou a arma, disparando mais uma vez.
Acordou. Estava amarrado em um hospital psiquiátrico. Mas o que ele estava fazendo ali? Começou a gritar e quando voltou estava no metrô. Fora apenas um sonho. Mas parecia tão real. Desceu na estação que desejara e olhou ainda para o bilhete. Alugou uma bicicleta e saiu pelas ruas e contemplar o orvalho daquela manhã. Parou em frente um sobrado, com coníferas enfeitadas com luzes natalinas. Deu meia volta e percebeu que não havia ninguém na propriedade. Mas se enganara, pois quando se adentrou pela janela, ouviu 
a risada de uma criança. Escondeu-se. Um homem de avental corria feliz atrás do pequeno e logo em seguida outro de gravata apareceu o abraçando por trás. Começou a chorar dali onde estava. Seu próprio irmão o apunhalava pelas costas casando e adotando uma criança com aquela criatura megera, dos infernos. Pensou em atirar, mas uma tontura forte o abateu. Ele desmaiou em um tom orquestral.
Abriu os olhos. Estava num clube de natação. Mas quem era aquela que havia acabado de passar? Bete Ratton. Puxa vida, ele não a via desde os tempos do colégio. A chamou pelo nome, mas ela não ouviu. Quando percebeu estava no meio de pessoas. Ficou perdido ali. Mas então avistou de longe aquele casal. Algo como nunca havia sentido tomou-o aos pedaços. Ele começou a tremer, mas não era de febre, era de algo que ele não sabia, algo interno, mental. Sentia desejo por ter aquilo. Mas sua família nunca o permitira. Ele tinha que ser homem, tinha que casar com uma mulher. Mas ele amava outro homem. Não, não podia ser. Ele não era gay. Fora apenas uma admiração, mas que admiração era aquela que tomara conta de seu corpo inteiro?  Começou a se contorcer. Apertas as mãos. Mordê-las. Foi então que se lembrou.
Ele estava em casa, ainda era pequeno, andava com seu velotrol pelo quintal, quando sua mãe chegou com a irmã nos braços. Acabara de sair do hospital. Veja Gregório, trouxe uma irmãzinha para você. Sei que queria um irmãozinho, mas vai ter que se contentar. Mamãe não pode mais gerar filhos, fez laqueadura pelo diabetes. NÃO PODIA SER. Ele fechou os olhos, estava naquela casa silenciosa. As pessoas que corriam felizes eram seus pais. Aquela menina pequena era sua irmã. Não ele não podia ter feito isso. Não, haviam feito uma sacanagem com ele. Ele não havia sido preso por causa disso. Foi uma injustiça. Não pelo amor de Deus diz que não foi verdade. Diz que ele não cometeu tamanha atrocidade.
De supetão voltou ao metrô. O tiro acabara de sair de suas mãos, mas quem estava lá não fora o casal gay que vira anteriormente, fora seus pais. Ele havia matado os próprios pais. Mas por que, por que ele fizera isso? A resposta quase veio instantaneamente fatal, neutralizando o ácido estomacal. Ele os vestira como personagens da sua mente. Sua mente o pregara peça. Ele tinha pânico, temor a um casal gay. Os via por toda parte. Sentia inveja. Clamava por justiça. Mas como ele deixou chegar a tal ponto? Por que ele não procurou ajuda? O hospital psiquiátrico!
Ele acordou assustado. Estava no meio de uma sessão com seu analista. Era ainda nove horas da noite. Saiu correndo. Berrando pelos corredores. Os outros internos levantaram reclamando. Ele se ajoelhou na enfermaria e implorou pelo seu remédio. Colocou as cápsulas na boca e...



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